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sábado, 27 de novembro de 2010

Me Visitem na Cadeia

Texto de João Ubaldo Ribeiro

Passei uns dias fora, sem ler jornais ou ver televisão. Deve ter sido esse afastamento fugaz das notícias a razão por que, ao voltar ao convívio delas, tomei um susto. Bastaram esses dias para minha perspectiva se apurar, por assim dizer, e eu sentir em cheio a assombrosa desvergonha a que chegaram o Brasil e suas instituições. Com perdão da má pergunta, que país é este, meu Deus do céu? Resolvi tomar a liberdade de dizer o que me parece no momento, sem eufemismos ou ressalvazinhas bestas, embora, é claro, me arrisque bastante. Posso ter meu sigilo bancário aberto — o que certamente provocaria frouxos de riso nos bisbilhoteiros —, assim como qualquer outro sigilo, pois o governo demonstrou que não merece confiança e é destituído de escrúpulos. Portanto, nenhum dos nossos dados a que é garantida confidencialidade está seguro. Ou de repente escarafuncham meu passado e descobrem um contemporâneo capaz de jurar que eu colei numa prova de latim do ginásio e portanto passei fraudulentamente, o que será considerado crime hediondo por algum tribunal desses do Executivo, que por aí abundam. Finalmente, como não empregarei eufemismos, não é impossível que me acusem de calúnia, difamação ou injúria e eu venha a ser condenado pelo que se considerará um ou mais desses crimes, apesar de que, no meu parecer, se trataria de delito de opinião, figura que não existe, mas que pode perfeitamente ser posta em prática, sob nomes artísticos que lhe emprestem a aparência de legitimidade.

Começo, não sem certo enfado, a dizer o que penso do Executivo, na figura do nosso presidente. Sua conduta me tem transmitido a impressão de que ele é enganador, cara-de-pau, evasivo, fanfarrão, oportunista, ardiloso, demagogo e cínico o suficiente para encarar com desplante todo mundo saber que ele é candidato, mas se aproveita de brechas na lei para fazer campanha às custas do erário e não raro enganosamente. Acho que só é de fato sincero quando se apresenta como o melhor presidente que “este país” já teve, pois o movem as certezas absolutas que a ignorância costuma suscitar. O povo é engabelado por cestas e bolsas mil, enquanto as reformas que efetivamente o redimiriam não vêm e tudo indica que não virão. Tampouco tenho — admito que muito subjetivamente — boa impressão do caráter de Sua Excelência e da sua propalada fidelidade aos amigos, diante da gana de grudar no poder.

Estendo-me, com igual ou maior enfado, ao Congresso e em particular à Câmara. Fazendo as exceções que com certeza são em menor número do que a gente esperançosamente pensa, na minha opinião o Congresso abriga elevada população de faltos de hombridade, larápios, carreiristas, mentirosos, venais, descarados, aproveitadores e membros da futura escola de samba Unidos do Deboche, tal a desfaçatez com que perderam o senso dos limites e da compostura e acham que podem fazer qualquer coisa, inclusive transformar a Câmara em gafieira. Cobertos de privilégios incogitáveis em qualquer país civilizado, os deputados quase não trabalham, trocam de partido em busca de vantagens pessoais e agora só faltam dizer-nos que comamos brioche ou que os incomodados se mudem. Continuarão a desrespeitar e aviltar o pouco que nos deixaram de dignidade e a protagonizar o que poderia ser chamado de chanchada ou ópera bufa, se isto não insultasse essas duas categorias artísticas.

Minha opinião sobre o Judiciário é que o número de juízes desidiosos ou venais é imenso, o povo não tem confiança na Justiça e ela própria muitas vezes parece não alimentar respeito por si mesma. Não consigo imaginar um juiz da Suprema Corte americana, que inspirou a criação do nosso Supremo Tribunal Federal, distribuindo entrevistinhas a torto e a direito. Tenho certeza de que estaria ameaçado de impeachment o magistrado da Suprema Corte que fosse cumprimentar um advogado de defesa que ganhou uma causa na qual esse mesmo juiz atuou. A Suprema Corte é sagrada, como devia ser o nosso Supremo. Mas, ainda na minha modesta opinião, o Supremo se tem abastardado em inúmeras ocasiões e nunca sua imagem foi tão vulgar e deslustrada.

O que eu penso do nosso sistema político é que falta um bom nome para designá-lo, pois democracia é que não é. Tentando assim de orelhada, ocorrem-me cacocracia, cleptocracia, hipocritocracia ou, melhor ainda, pornocracia, pois é muito menos pornográfico um travesti se exibindo na avenida Atlântica, para faturar um dinheirinho com os pais de família inatacáveis que constituem a parte mor de sua clientela, do que um vendilhão da pátria, um traficante de votos, um deslumbrado pelo poder, um criminoso disfarçado sob alegações grotescamente entortadas. E penso que nosso país é hoje moralmente flácido e desorientado. Não é incomum que o cidadão não consiga agir corretamente porque o sistema é tão corrompido que não aceita a integridade, ela nos é cada vez mais uma estranha. A corrupção está em toda parte, da gasolina adulterada ao peso roubado nos produtos embalados, aos remédios falsificados, aos atestados forjados, às instituições de caridade trapaceiras e a tudo mais que nos rodeia, onde sempre suspeitamos da existência de uma mutreta, pois a mutreta é o nosso modus operandi trivial.

Havendo assim expressado com franqueza minhas opiniões, no que julgo ser o exercício de um direito que, mais que constitucional, é direito humano basilar (sou jusnaturalista da velha guarda, colegas bacharéis), estou disposto a enfrentar as conseqüências a porventura advirem do que acabo de escrever. Se me processarem e prenderem, espero que o dr. Fernando Henrique, que processado já está sendo, também acabe preso. Achei meu diploma em Itaparica e tenho a mesma famosa prerrogativa de cárcere especial.

Mas receio que, numa insólita confluência de posições, ambos peçamos celas separadas.

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