Por Sonia Hirsch
Antes de mais nada: leite, só de mãe. Todo animal mamífero mama no peito até poder alimentar-se sozinho, mas é no peito de sua própria mãe. As histórias de Rômulo e Remo, amamentados por uma loba, e de Tarzan, criado por uma macaca, e de Mowgli, criado também por uma loba, são meras exceções que confirmam a regra: leite, só de mãe.
Leite é sangue que deixa de correr pelo umbigo e sai pelo bico do seio. Até do masculino, afirmam as Amigas do Peito, se for bem sugado: a glândula desperta. As mães-de-leite que o digam, se é que ainda existem, criando no peito o filho dos outros – que passava a ser seu, com seu sangue circulando pelas veias.
E na boca a criança começa a aprender. Tem que puxar, tem que querer, às vezes chora de tão difícil que é no comecinho. Para a mãe às vezes também é difícil, encontrar a melhor posição às vezes leva uns dias, às vezes cansa. Mas sempre acabam se ajeitando. Da boca do neném o leite desce para o estômago, de lá para os intestinos, ativando no corpinho tudo aquilo que está pronto a funcionar. Devagar, devagarinho, deixando o tempo passar...
Botou pra arrotar? Arrotou? Golfou? É normal. Golfada é uma sobra pequena de leite, diferente do vômito, que é grande e sai com muita força. Golfar acontece de vez em quando. Mas arrotar tem que ser sempre, até duas ou três vezes depois de mamar, ou mesmo no meio da mamada, senão o bebê fica agoniado.
E ele dorme, come, cresce. Logo abre os olhos, logo dá um risinho, vai ficando com um jeito que é só seu. Acorda somente pra mamar ou porque está molhado e se sente incomodado. Não está pronto pra ir à luta, tem que ser cuidado, e sobretudo tem muito direito ao que é seu: como diz minha mãe, aquele leite ali do peito o bebê trouxe com ele. É dele, não lhe pode ser negado.
- Ah, mas me disseram que meu leite é fraco...
Fraco? Estão aí os organismos mundiais de saúde para atestar: mesmo o leite da mãe anêmica, aquela típica biafrense, é nutritivo para o filho. As reservas biológicas da mãe se escoam todas para o filho. Mãe, só tem uma. Leite, só de mãe.
- Ah, mas um leitinho de vaca bem fresquinho... Eu fui criado com leite de vaca, sabe? A gente tomava uns dez litros por dia lá na fazenda. Era bom demais...
Tirem-me da frente de uma tigela de nata! Leite de vaca é uma gostosura, e também se não fosse não fazia o sucesso que faz. Docinho, né? Mui doce, três vezes mais que o leite humano. O açúcar dele se chama lactose. Para digerir essa lactose o pâncreas tem que fabricar uma enzima chamada lactase, ase, com a. Mas vejam só, na maior parte do planeta você só produz essa enzima até, no máximo, os 7 anos de idade. Daí para a frente a natureza acha que já dá pra você se virar sem leite, e até sem mãe, que afinal você já tem todos os dentes.
Mas vamos supor que você goste de um leitinho, então todo dia vai lá e pá, café com leite, copinho de leite no bar, leitinho quente antes de deitar. E o intestino péssimo, cheio de gases; o fígado esquisito; alergia na pele; peito encatarrado; uma sensação de cansaço, vista fraca, preocupações intensas.
Vai ao médico. Exames. Paranóias. Remédios.
Agora, pega uma lente de aumento e olha bem no fundinho do diagnóstico que tá lá: deficiência de lactase, ase, com a, a enzima que dissocia o açúcar do leite.
Sutil, não é mesmo?
Nada errado com o leite: você é que é deficiente, viu?
E ainda por cima, sabe-se lá com que você andou misturando esse leite?
Quê? Com carne? Valha, que as pragas de Moisés não te caiam sobre a cabeça. Imagine que a religião judaica é cheia de recomendações alimentares, e uma delas diz para nunca misturar o leite da mãe com o sangue do filho. Passando por alto parece uma coisa assim romântica, sentimental, quando eu era pequena pensava que era para a vaca não ficar triste porque o filho ia ser comido, mas não é bem isso. É que tanto a carne quanto o leite são proteínas completas, o que já dá um certo trabalho ao estômago, e ainda por cima são de tipos completamente diferentes. O suco digestivo que serve para a carne não serve para o leite. Isso quer dizer que logo apodrece algo no reino do estômago, às vezes pinta como azia, má digestão, salta um sal de fruta!
- Ah, mas um leitinho... E de mais a mais, de onde meu filho vai tirar cálcio se não beber leite?
Boa pergunta. Mas de onde a vaca tira tanto cálcio? Do capim. Elefantes e outros herbívoros de grande porte também. As folhas verde-escuras da mostarda, da couve, da salsa, das algas marinhas, o gergelim, a castanha-do-pará, alguns chás como o banchá e o chá verde, misso, dente-de-leão, folhas de nabo, trigo-sarraceno, grão-de-bico, queijo de soja, soja verde, feijão, melado de cana: tudo isso tem cálcio, e muito.
Agora vê:
100 gramas de leite de vaca 118 mg de cálcio
100 gramas de leite de cabra 129 mg de cálcio
100 gramas de queijo de soja 128 mg de cálcio
50 gramas de salsa 102 mg de cálcio
50 gramas de grão-de-bico 150 mg de cálcio
10 gramas de gergelim 116 mg de cálcio
10 gramas de alga hijiki 140 mg de cálcio
10 gramas de alga kombu 80 mg de cálcio
6 g de pó da casca do ovo 2400 mg de cálcio
100 gramas de leite humano, apenas 35 mg de cálcio.
Cálcio de leite humano. Para ossos, dentes, rins e fígado humanos. Pois é. E as fontes vegetais de cálcio são todas fáceis de assimilar. A proteína do leite materno, albumina, é própria para gente digerir. Mas a caseína, que é a proteína do leite de vaca, é barra pesada. Pode deixar seu bebê com diarréia, mal-estar, alergias. Por isso é que os antigos tomadores de leite preferiam sempre coalhada, iogurte, leitelho, queijo. O processo de fermentação pré-digere as proteínas. De qualquer forma, como uma alimentação rica em leite de vaca sempre vai ser excessiva em relação às necessidades humanas, o excesso irá se depositando pelos cantos.
Em forma de gordura sob a pele; como catarro pegajoso nos brônquios, intestinos e pulmões; como açúcar, infernizando um tanto a vida do pâncreas e do fígado e depois se convertendo também em gordura; e finalmente como excesso mesmo, proteína não assimilada que fica rolando pelo sangue e acaba infeccionando em algum lugar. Espinhas são isso, proteína que apodreceu e o corpo quer eliminar.
Tem mais: o leite que se vende por aí quase não tem gordura, e a gordura natural do leite é fundamental para a absorção do cálcio. Tanto que até o governo americano já recomendou que se substitua o leite desnatado pelo integral.
Outra coisa: não há um consenso científico sobre as nossas necessidades diárias de cálcio, porque isso varia muito de pessoa para pessoa. A gente transmuta os alimentos dentro do corpo, sintetiza o que antes não existia, absorve até mais do que precisa. Excessos de cálcio vão criar vértebras calcificadas, articulações duras, cálculos renais. Mas, como referência, o que se tem dito é que crianças precisam de 400 a 500 mg por dia, adultos 800 mg, adolescentes, grávidas e mães amamentando 1200 mg; e é bom lembrar que o sol e os exercícios fixam o cálcio no organismo, da mesma forma que a mastigação fixa o cálcio nos dentes.
O bebê mama, dorme, cresce.
Depende todinho de você.
Quando está nervoso, é o calor do seu corpo que o acalma.
Então, me diga: você acha mesmo que uma vaca se preocuparia com ele tanto quanto você?
Sonia Hirsch é jornalista e escritora voltada para promoção da saúde.
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