Autoria de Hugo Leal, escritor e poeta. Agradecemos a colaboração.
Kranhotire, este é meu nome. Sou de uma tribo membengocré, do Alto Xingu... O povo do buraco d’água, que veio lá do céu para a terra, caído das estrelas. Pelo menos foi o que minha mãe me disse, e meu avô disse pra ela, repetindo o que lhe disse seu pai, meu bisavô.
Mas meu pai genético é Louis Monnard, um francês loiro, olhos claros, fotógrafo profissional que se apaixonou pelo mistério amazônico e temporariamente por minha mãe, Piná, filha de Konhokerê, a poderosa, uma das raríssimas mulheres feiticeiras da tribo, e de Pungrantire, o maior de todos os pajés conhecidos.
Apesar do evidente contragosto dos dois pilares da magia caiapó, as mulheres por lá têm total comando de seu corpo e de seu coração. Assim, quando o amor chegou, nada mais pode ser feito, a não ser se curvar perante o inevitável e adotar o “invasor” como alguém que veio para ficar... Pelo menos o tempo suficiente para gerar no ventre de Piná um fruto que, um mês antes do prazo normal da gestação veio ao mundo, apressado como seria depois por toda sua existência.
Meu pai já tinha voltado para o mundo dos brancos quando nasci, e o vi apenas esporadicamente em minha infância. Estava ausente quando aos 8 anos, nos rituais da festa Koko, recebi oficialmente meu nome, Kranhotire (“O Esquisito”), também conhecido como Echakã Auí (Olhos Claros) ou Auati Baquara (louro esperto), por meu aspecto e natural vivacidade, plenamente desfrutada na aldeia Capoto até os 12 anos. Então minha mãe faleceu, vítima da doença de branco que assolou nosso povo – o sarampo, então letal para um índio.
Também tive, mas os anticorpos arianos me colocaram rapidamente de pé para ir com meu pai, que resolveu me assumir, rumo à Europa e a todas as conseqüências de meu “eu” civilizado, - cidadão francês nascido no “estrangeiro” – conforme diz o registro de meu nome branco, Eugenie Monnard, no Consulado.
Na despedida da aldeia, Pungrantire, meu brasileiríssimo avô, me colocou no pescoço um colar de contas de uaranã seco, unidos na forma de uma pequena muiraquitã (rã, perereca), bicho encantado e seu condutor desde as primeiras viagens xamânicas, dizendo: “onde você estiver, Kranhotire, este amuleto o trará sempre aqui”.
Sempre usei o colar, desde então. Ele como que se incorporou a meu corpo. Quando o tirava, por algum motivo, parecia faltar algo, como se uma parte importante de mim tivesse sido amputada, sensação que desaparecia tão logo eu o colocava de novo. Com o passar do tempo, integrou-se de tal maneira a meu cotidiano que nem me lembrava mais dele, ou da história que o acompanhava.
Firmemente determinado a me encaixar na realidade ocidental, meu pai branco, providenciou uma formação cultural sólida, da qual minha vontade instintiva de saber sempre mais usufruiu prazerosamente. Cursei Antropologia em Nanterre e me tornei o primeiro caiapó a ingressar na Sorbonne, onde fiz mestrado e doutorado com teses sobre a Cultura dos Povos Primitivos – uma “vocação” atávica, mais compreensível pelas explicações impregnadas de magia dos indígenas do que pelo racionalismo imposto pela minha educação.
Depois, com uma bolsa da Fundação Konrad Adenauer, vim realizar, aqui no Brasil, pesquisas sobre as possibilidades de preservação e documentação dos costumes indígenas, numa época marcada por choques entre posseiros e os moradores das reservas. O entusiasmo com que me dediquei à defesa dos direitos de meus patrícios me valeu a imediata antipatia de alguns burocratas, fazendeiros e políticos, cuja pressão acabou provocando a suspensão da bolsa e minha vinda para São Paulo, onde meu dinheiro acabou e a penúria financeira me levou a buscar uma maneira qualquer de sustento.
Foi quando descobri que antropólogos, mesmo com mestrado e doutorado em universidades francesas, são mão-de-obra desqualificada até para trabalhos que não exigem qualificação, pois deixam transparecer uma cultura sem nenhum valor pragmático que os afasta tanto dos yuppies como dos peões, mergulhando-os em um limbo econômico sem perspectivas de nenhuma espécie.
Foi assim desempregado, frustrado, dependendo de pequenos bicos, que me vi um dia andando a esmo pela Paulista, após perder, por exagero de competência, um trabalho temporário de pesquisa. Sem nada o que fazer, sentei num banco bem no meio do Parque Trianon, e ali fiquei, desalentado, lutando contra o avanço depressão e brincando, quase que inconscientemente, com as contas de uaranã de meu colar.
Foi quando vi de relance, descendo das árvores daquele último reduto paulistano da Mata Atlântica, um bando de kubuts, macacos-guariba, guinchando, atrás de um kokoire – macaco-prego – e tentando lhe roubar o que me pareceu ser uma banana, com certeza conquistada a duras penas por este ancestral da humanidade perdido na metrópole.
O kokoire, em sua fuga, veio em minha direção, usando meu corpo como um muro entre ele e os inimigos. Instintivamente, agitei as mãos, assustando os perseguidores e garantindo, meio sem querer, a refeição do perseguido.
Então veio o susto: o kokoire, de repente, se virou para mim e disse: - Embá exá poaka pitivu, membira Piná? E, apontando para o colar, terminou: - Muirakitã jokuaí .
Enquanto minha mente traduzia a frase – “em que posso ajudá-lo, filho de Piná? Muiraquitã me enviou” - , e o meu lado branco entrava em estado de pavor, a linhagem de primeiríssimo nível dos feiticeiros indígenas da família de minha mãe falou mais alto e, inconcebivelmente calmo diante do fato insólito, expliquei ao macaco-prego, desenferrujando o idioma jê, minha situação de momento, a necessidade de akossí (moeda) para sobrevivência e metas maiores.
O kokoire me ouviu atentamente, a compreensão luzindo em seus olhos sábios. Então, tão subitamente como surgiu, desapareceu, me deixando ali sozinho, sem saber, mas sabendo, se tinha sido um sonho ou um contato com as forças ancestrais da terra.
Isso porque, para os caiapós – principalmente Pungrantire, que os consultava para praticamente tudo – os kokoire representavam os espíritos protetores da tribo, aqueles que a salvava dos perigos, ensinando encantamentos contra os inimigos e remédios para doenças.
E para mim também, porque desde então sonhei toda noite com eles. Na primeira vez, eram dez, e esfregavam a sujeira da floresta com uma palha de aço diferente, que tiravam de uma embalagem onde estava escrito AÇOLIN.
Na manhã seguinte ao sonho, um sucateiro de aço, José Leão, que conhecera meu pai nos anos 50 e era amigo dele desde então, bateu na minha porta com uma proposta inimaginável: queria um administrador de confiança para sua pequena fábrica de materiais de limpeza, e me ofereceu sociedade. Aceitei na hora e, após pesquisar no mercado um possível registro da marca, lhe propus criar o AÇOLIN.
Enquanto fabricávamos o produto, tive outro sonho, agora com o kokoire pedindo que eu fizesse, no sítio de meu sócio, o tapií, ou festa da anta. Atendi a solicitação e, logo após o ritual, uma rede de supermercados comprou toda nossa produção e ainda se comprometeu a adquirir, pelos próximos três anos, o dobro da quantidade, caso pudéssemos fornecer.
Mais um sonho, mais um ritual – agora o do Karuguá, ou arco-íris – e os equipamentos necessários para a expansão caíram em nossas mãos quase de graça. AÇOLIN fez um sucesso surpreendente, ameaçando até a marca líder.
O mesmo ocorreu com outras idéias sonhadas, como o refrigerante Kuarup, a griffe Uaná e os brinquedos pedagógicos Curumi, que hoje são exportados para Europa, Ásia, Estados Unidos e Austrália.
Agora, estou trabalhando na comercialização de um game eletrônico, chamado a Guerra dos Bichos, onde os animais ditos selvagens, chefiados pelos kokoire, expulsam os civilizados da Amazônia e recuperam a floresta.
Trata-se de uma joint-venture com um grupo multinacional japonês, que pretende colocar no mercado 12 milhões de unidades. O entusiasmo das escolas e dos maníacos por jogos é grande, e metade da produção está antecipadamente vendida para diversos pontos do mundo.
Parte dos lucros estou investindo na compra, através de testas de ferro, de áreas que fazem fronteira com a reserva caiapó no Xingu, ampliando assim o espaço de meus irmãos índios, da fauna e da flora nativa.
Acostumei-me a ir todo dia, pela manhã, ao Parque Trianon, onde sento no mesmo banco, canto a canção de saudação aos kokoire que aprendi com Pungrantire e deposito para eles, aos pés do ingazeiro, uma oferenda de frutas.
Este mês, motivado por mais um sonho, deixei meu muiraquitã pendurado em um dos galhos da árvore e saí. De longe, ao olhar para trás, pude ver um kokoire pegá-lo, talvez para oferecê-lo a um karibó (mestiço) mais necessitado do que eu.
Os sonhos, no entanto, continuam, e o inesgotável repertório de idéias kokoire também. Por isso posso afirmar que a Paulista virou literalmente um programa de índio, e que o macaco-prego é o melhor gerente de marketing que conheci.
Atualmente, estou tentando convencer os kubuts, ou macacos-guariba, a cuidarem com sua proverbial esperteza de meus impostos e taxas. Mas pelo silêncio obtido em resposta, começo a me convencer de que não vai ser possível. Afinal, para a voracidade do Leão, um macaco, mesmo mágico, é simples aperitivo.
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